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Desde a aprovação da Lei da SAF, o futebol vive um momento de transformação, com a possibilidade real de termos novas formas de controle acionário, a chegada de investidores especializados, que tem em mente a eficiência no lugar da paixão que deixa rastros de destruição.
Nesse contexto, ainda mais com os efeitos da pandemia, nos deparamos com a enésima possibilidade de os clubes organizarem suas dívidas. Digo “organizarem” porque é possível fazer desde reestruturações e alongamentos, até efetivas organizações.
O primeiro movimento, que não rem relação com a SAF, é o do uso da chamada Transação Tributária, que possibilita a renegociação de dívidas previdenciárias e não-previdenciárias entre 60 e 120 meses. É quase como se fosse um Profut II.
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Já falei sobre isso: trata-se de uma renegociação que não deveria servir aos clubes de futebol, visto que não serve aos chamados “devedores contumazes” – aqueles que atrasam de forma recorrente seus impostos – mas que, por algum equívoco, deixou justamente e que esta definição fosse feita em lei complementar que nunca ocorreu. Portanto, como ninguém pode ser enquadrado como devedor contumaz, os clubes se aproveitam da regra.
O outro é o uso do chamado Regime Centralizado de Execuções (RCE), instrumento que foi introduzido pela Lei da SAF, que possibilita colocar todas as dívidas trabalhistas e cíveis numa espécie de fila de pagamentos.
Essa possibilidade nasceu como forma de incentivar os clubes a se transformarem em SAF, como um benefício, mas vem sendo largamente utilizadas pelas associações, lastreadas no que me parece ser uma brecha legal. Como leigo, não entendo como um artigo específico de uma lei cujo objetivo é claro – tratar da criação da SAF – é utilizado pelas associações, mas até quem escreve leis pode errar. Acontece.
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O jornalista Rodrigo Capelo fez um artigo e um podcast recentes sobre este tema, baseado nos movimentos realizados pelo Vasco da Gama. Vale ouvir e ler para entender sobre o RCE.
Não gosto da ideia de aliviar a vida dos clubes em renegociações recorrentes de dívidas previdenciárias (INSS) e não-previdenciárias (basicamente IR Pessoa Física). Diferente de empresas que atrasam ou deixam de recolher impostos, porque é a única forma de seguir operando e mantendo empregos – culpa de um sistema tributário ruim como o brasileiro – os clubes de futebol atrasam FGTS, INSS, IRPF porque prometem pagar algo que não tem capacidade de cumprir.
Um clube pode viver sem prometer gastar o que não pode pagar. Então, esses atrasos são deliberados, gerando uma capacidade competitiva artificial. Dívidas que nascem num mandato e são pagas pelos seguintes. Na verdade, algumas vezes alegram os torcedores, mas por fim são sempre eles que pagam esta conta.
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Já o RCE é uma tentativa de organizar os pagamentos de dívidas trabalhistas (salários) e cíveis. Há uma possibilidade de redução de valores a critério dos credores, mas não uma obrigação. No final, é uma faca de dois gumes, pois organiza os pagamentos e alivia o fluxo de caixa, mas não garante deduções e ainda põe uma pressão pela redução, dando um prazo efetivo para quitar dívidas que existem há anos.
Baseado na Lei da SAF, os clubes estão usando a possibilidade de destacarem até 20% das receitas para pagarem dívidas trabalhistas e cíveis (fornecedores, intermediários) em até 10 anos. Com isso, se mantiver o pagamento em dia, baseado nas receitas mensais, o clube consegue ao menos manter o fluxo de caixa aliviado e afasta as penhoras que sufocam parte da gestão financeira.
Dito isso, temos que ser pragmáticos: as possibilidades foram abertas e estão sendo utilizadas. Mas o problema não é esse, e aí é que entra o cerne da questão: será que os clubes conseguirão dar conta desses pagamentos? Será que eles manterão as novas obrigações em dia?
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Como já citei acima, essa é a enésima possibilidade de reestruturação de passivos trabalhistas, fiscais e, agora, cíveis. O que garante que desta vez os clubes seguirão na linha? O que garante que conseguirão pagar? Nada. E aqui mora um dos problemas.
Considerando a origem das dívidas, competir sem poder, essas renegociações deveriam ter como contrapartida certa dureza nos controles de pagamentos e execuções, na falta deles. E daí, assim como utilizam a Lei da SAF para as renegociações, os credores devem utilizá-la para garantir os pagamentos. Afinal, um dos artigos permite às associações aderirem à possibilidade de pedirem Recuperação Judicial.
Sendo assim, é garantido aos credores pedirem a falência das associações. Portanto, os credores precisam estar atentos e se organizarem em grupos para garantirem seus direitos.
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Ou seja, há instrumentos para reforçar a necessidade de manter pagamentos em dia.
Mas qual o impacto dessas renegociações no caixa dos clubes? Grande. Vamos a um exemplo, usando o caso do Vasco:
– A Transação Tributária mais recente renegociou dívidas de R$ 138 milhões;
– O RCE é de R$ 223 milhões;
– Em dezembro de 2020, o clube tinha R$ 200 milhões em Profut;
Se a Transação começar consumindo algo como R$ 5 milhões, o RCE outros R$ 22 milhões e o Profut cerca de R$ 5 milhões, falamos de um comprometimento de R$ 32 milhões. Isso, considerando valores potenciais, dado que não há um cronograma sobre Profut, nem Transação.
A receita média do Vasco nos últimos dez anos, corrigida pelo IPCA, foi de R$ 177 milhões. Não vou trabalhar com cenários do clube, porque há inúmeras incertezas, que inclusive são parte das dificuldades em se fazer um valuation, conforme falamos na semana passada. Trabalho com dados realizados.
Se deduzirmos esses valores das renegociações da receita média total, que inclui negociação de atletas, sobra ao clube R$ 145 milhões anuais. É um bom dinheiro. Entretanto, nos últimos cinco anos, o clube apresentou R$ 122 milhões como custo médio com Pessoal, e outros R$ 59 milhões médios como Outros Custos e Despesas. E ele precisa disputar competições contra clubes que faturam mais de R$ 400 milhões.
Não preciso ir muito mais longe. Considerando que esses valores de pagamento crescem ao longo do tempo, a chance de sobrar dinheiro para investir e liquidar outras dívidas com bancos e outros clubes, por exemplo, é mínima.
Exceto se o clube buscar cortes profundos de custos, que é onde as gestões podem atuar de forma mais direta e eficiente. Porque aumentar receitas é sempre mais complexo, depende de muitas coisas, inclusive da evolução da indústria, negociação de atletas, crescimento de renda.
Falamos sobre o Vasco, mas serve para o Botafogo, o Cruzeiro e tantos outros clubes estrangulados em dívidas. O processo de reestruturação não acaba na renegociação das dívidas, mas inicia nela. Ou, de outra forma, depende de uma série de fatores que precisam andar em conjunto, inclusive na maior eficiência na formação de atletas e na formação de elenco profissional. Saber fazer mais com menos.
A ideia aqui não é criticar as renegociações, mas sim alertar para o fato de que elas precisam ser monitoradas pelos credores. Também é preciso comunicar aos torcedores que o trabalho dos clubes está longe de ser encerrado. A expectativa justa é esperar que leve tempo para que possam se recuperar. Precisarão contar com a gestão firme e correta. Que num ambiente político é apenas mais um desafio a ser superado.