Devo, não pago, nego enquanto puder

A proposta de adiar o pagamento de precatórios deve ser entendida como o que é: calote. Já a ideia de criar um fundo para pagá-los à frente abre espaço para novos gastos e implica financiar despesa corrente com receitas temporárias e incertas

Alexandre Schwartsman

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O ministro da Economia, Paulo Guedes, fala em reunião, ao lado do presidente Jair Bolsonaro (Foto: Marcos Corrêa/PR)
O ministro da Economia, Paulo Guedes, fala em reunião, ao lado do presidente Jair Bolsonaro (Foto: Marcos Corrêa/PR)

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Tendo tratado na semana passada da penúltima do ministro, aproveito agora para analisar a última: a proposta de mudar as regras do jogo para não pagar integralmente a conta dos precatórios, abrindo assim espaço para outras despesas no orçamento federal.

Repetindo o lema de todos os caloteiros, afirmou: “devo, não nego, pago quando puder”, apenas levemente alterado no título desta coluna.

Precatórios são definidos como requisições de pagamento de determinada quantia a que a Fazenda Pública foi condenada em processo judicial. Alguém, portanto, se sentiu prejudicado por uma ação do poder público e recorreu aos tribunais, que lhe deram ganho de causa, redundando em reparação, no caso o precatório.

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Trata-se, pois, de despesa primária, visto que repõe dispêndio que deveria ter sido realizado anteriormente, sujeita, portanto, ao teto de gastos.

O gráfico abaixo resume os gastos federais com precatórios e sentenças judiciais desde 2007, medidos em 12 meses a preços de junho de 2021, divididos em cinco grupos principais: (a) benefícios relativos à previdência urbana, (b) benefícios relativos à previdência rural, (c) pessoal e encargos sociais, (d) Benefício de Prestação Continuada e, por fim, (e) os relativos a custeio e capital.

Atingiram no ano passado R$ 54 bilhões, valor que se manteve ao longo de 2021.

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Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional

O valor, ainda que impressionante, representa menos de 3% das despesas primárias do governo federal, equivalente a 0,4% do PIB em junho deste ano, lembrando que a despesa primária total representou 22,3% do PIB (R$ 1,9 trilhão) no mesmo intervalo.

Para o ano que vem, segundo o ministro, os pagamentos chegariam à casa de R$ 90 bilhões, o que “superaria a capacidade de pagamento do Tesouro”, apesar da previsão de gastos de R$ 1,7 trilhão no período segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias.

Alega também até agora que “não sabia” do montante – daí tê-lo classificado como “meteoro” –, o que foi devidamente desmentido pela AGU, que inclusive notou que esta possibilidade se encontrava no anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias, peça que, imagina-se, o ministro deveria ter lido, ou talvez se informado a respeito.

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O ministro alega não haver calote, já que os precatórios até certo limite (ainda a ser definido) seriam pagos integralmente, o que logicamente significa que os demais não o seriam, alternativa em nada distinta do caso em que determinada dívida, ao invés de paga nas condições originalmente acordadas, fosse alterada unilateralmente pelo devedor, o que é corretamente classificado como… calote.

A motivação nada tem de nobre. Ocorre que o governo pretende expandir o Bolsa-Família, agora renomeado Auxílio Brasil, mas, em vez de fazer isto sujeito à regra do teto, que obriga à redução de outras despesas para acomodar gastos mais elevados, pretende simplesmente adiar o dispêndio relativo aos precatórios, empurrando para o futuro o que deveria ser pago no presente. Em outras palavras, uma “pedalada”.

Há, em paralelo, a discussão de criar um fundo para pagamento de precatórios, retirando-os na prática do orçamento (e possivelmente também do teto de gastos), cujos recursos viriam de possíveis receitas de privatização, concessões, antecipação de recursos do pré-sal, promessas de ganhos com redução de benefícios fiscais e dividendos de estatais entre outros.

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Trata-se de outra péssima ideia. Além de criar espaço para novos gastos no orçamento, a proposta, se levada adiante, implicaria usar recursos temporários e incertos (quantas privatizações ou concessões ocorrerão e qual o seu valor, por exemplo?) para bancar gastos recorrentes, senão crescentes como sugerido no gráfico acima.

Posto em termos mais familiares, seria o equivalente a prometer bancar os buracos persistentes e crescentes no orçamento doméstico quando e se o carro for vendido, sem maiores planos sobre o que fazer quando aquele dinheiro acabar, se é que vai se materializar.

O ministro faz pose de liberal, mas elementos básicos da agenda, como respeito às regras do jogo, aos contratos e o controle de gastos, se esvaem por nada além de uma tentativa de manter o cacife político do presidente na eleição do ano que vem. E tem gente que ainda acredita.

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Alexandre Schwartsman

Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.