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SÃO PAULO – A Sputnik V é uma das vacinas contra a Covid-19, desenvolvida pelo laboratório russo Instituto Gamaleya e pelo Fundo de Investimentos Diretos da Rússia. O Ministério da Saúde assinou um contrato para aquisição de 10 milhões de doses. Governadores também estão de olho na vacina, com pedidos que somam 66 milhões de doses.
Porém, a Sputnik V não deve ser aplicada em breve na campanha de imunização brasileira contra a Covid-19.
Na última segunda-feira (26), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) negou pedidos de importação da vacina assinados por dez estados. A vacina também não conta com autorização de uso emergencial, muito menos com registro definitivo.
O InfoMoney explica abaixo como a Sputnik V funciona; quais foram suas tentativas de participar da imunização contra Covid-19 no Brasil; quais são os obstáculos para aprovação apontados pela Anvisa; e quais são as chances reais de a vacina ser aplicada em breve no país.
Como a Sputnik V funciona?
A Sputnik V foi desenvolvida pelo laboratório russo Instituto Gamaleya e pelo Fundo de Investimentos Diretos da Rússia. A Sputnik V foi criada a partir de um método chamado de vetor viral. Esse método é diferente do usado pela CoronaVac, que coloca o coronavírus inativado na vacina, e da tecnologia envolvendo o RNA mensageiro empregada na vacina Pfizer/BioNTech.
No método de vetor viral, a vacina leva um adenovírus (grupo de vírus que causam doenças como conjuntivite e gripe). Esse adenovírus carrega também o material genético do coronavírus para dentro do nosso corpo, com o objetivo de ajudar o sistema imune do paciente a criar uma resposta imunológica mais poderosa. Esse adenovírus é modificado para não conseguir se reproduzir. Dessa forma, não é capaz de causar a doença correspondente.
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Brasil: dois pedidos para uso emergencial
Estas são as etapas de desenvolvimento de uma vacina contra o novo coronavírus: pesquisas básicas e testes não clínicos; testes clínicos de fase I; testes clínicos de fase II; teste clínicos de fase III; e o pedido de uso emergencial de ou de registro definitivo.
São avaliados aspectos como segurança da vacina (chance de efeitos adversos graves), imunogenicidade (capacidade de gerar anticorpos) e eficácia na proteção contra Covid-19 dependendo de quantidade de doses e forma de aplicação. A cada progressão da fase, uma leva de documentos deve ser entregue à Anvisa.
A Sputnik V está há meses tentando sua aprovação. A União Química, laboratório brasileiro que desenvolverá a vacina russa por aqui, protocolou em 15 de janeiro seu primeiro pedido de uso emergencial no Brasil de 10 milhões de doses da Sputnik V.
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No dia 17 de janeiro, a Anvisa devolveu a documentação. “O pedido foi restituído à empresa por não atender os critérios mínimos”, disse a Anvisa em nota. No final do mesmo mês, representantes da União Química se reuniram com a Anvisa para apresentar mais detalhes sobre o imunizante. A agência informou que a União Química não apresentou novos documentos.
Em 25 de março, o União Química protocolou seu segundo pedido para uso emergencial da Sputnik V no Brasil. Esse pedido ainda está sob análise da Anvisa, que novamente pede mais dados.
A negação da importação do imunizante por governadores na última segunda-feira (26) é um processo paralelo a esse segundo pedido de uso emergencial.
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Quais dados faltam para a Sputnik V?
A Anvisa divulga um painel sobre o andamento da aprovação de cada vacina contra a Covid-19. A Sputnik V aparece com apenas 13,11% dos documentos com análise concluída. 63,75% dos itens estão pendentes de complementação; 15,48% não foram apresentados; e 7,65% estão sob análise.
Na 7ª Reunião Extraordinária Pública da Diretoria Colegiada da Anvisa, foram apresentadas diversas pendências. O InfoMoney elenca abaixo os principais obstáculos para a inclusão da Sputnik V na campanha brasileira de imunização contra a Covid-19, segundo a Anvisa:
Presença de adenovírus replicantes
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Gustavo Santos, gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos na Anvisa, não recomendou a importação do imunizante na última segunda-feira (26). Santos ressaltou principalmente que a agência encontrou adenovírus replicantes na vacina russa.
A presença de adenovírus replicantes pode ter impacto na segurança da saúde humana, como acúmulo dos adenovírus em tecidos. Eventos de trombose estão sendo ligados a imunizantes que usam a tecnologia de vetor viral, exemplifica Santos. “O vírus que deve ser usado apenas para carregar o material genético do coronavírus para as células humanas se replica. Isso é uma não conformidade grave (…) Perguntas cruciais não foram respondidas.”
Questionamentos que precisam ser endereçados, segundo a Anvisa: os vírus replicantes podem permanecer por quanto tempo no organismo humano? Em quais órgãos e tecidos podem ser encontrados? Podem causar algum dano, dependente da quantidade? Esses vírus replicantes podem ser transmitidos a outras pessoas? O que significa em termos de segurança para quem receber a vacina? Existe risco aumentado de eventos adversos, tromboembólicos e outros?
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A presença dos vírus replicantes foi verificada em todos os lotes analisados pela Anvisa, diz Santos. Essa presença estaria em desacordo com o desenvolvimento de vacinas que usam a tecnologia de vetor viral e com o perfil de qualidade esperado pela agência. Ainda, não houve apresentação de justificativa para a existência dos vírus replicantes.
Santos complementou que faltam dados não apenas sobre o controle de outros vírus nas vacinas, mas também de impurezas. A presença desses dois componentes pode impactar a segurança do imunizante. “Não foi demonstrado controle adequado do processo produtivo e das matérias-primas para evitar contaminantes.”
Dados de segurança, imunogenicidade e eficácia sem padrão
Houve quatro estudos clínicos para gerar dados sobre segurança e imunogenicidade da Sputnik V (Fase I e II). Já para os dados de eficácia (fase III), houve apenas um estudo clínico, conduzido na Rússia. O gerente-geral da Anvisa diz que houve uma “limitação de avaliação dos resultados por ausência de validação de metodologias.”
Santos afirma que, por exemplo, a instrução dada aos pacientes para reportar efeitos adversos e a avaliação desses efeitos pela equipe médica não ficaram claras. A avaliação sobre a relação de causalidade entre o imunizante e efeitos adversos graves, como óbitos, também teria sido limitado. A Sputnik V também não teria apresentado a análise de segurança por faixa etária, por comorbidade e para soropositivos para a Covid-19. A falta de todas essas informações dificulta a elaboração de uma bula para a Sputnik V, afirma o gerente-geral.
Também não se apresentaram informações sobre persistência ou decaimento de anticorpos após 42 dias, o que avaliaria a imunogenicidade.
Por fim, a Anvisa também afirma que os dados sobre a eficácia da vacina são incertos, porque não houve padronização na avaliação dos pacientes (como quais primeiros sintomas seriam considerados, período de coleta e quais amostras dos pacientes seriam coletadas).
Mesmo se informações adicionais fossem apresentadas, a falta de padronização inviabilizaria a análise pela Anvisa. “Não se pode excluir a possibilidade de terem ocorridos casos que foram considerados negativos durante o estudo, quando, na verdade, poderiam ser positivos para Covid-19”, diz Santos.
Falta de comparação entre vacinas clínicas e comerciais
Em escala laboratorial, cinco litros de vacina são elaborados. Já na escala comercial/industrial, são mil litros de vacina. A Anvisa diz que não recebeu estudos que comparam a performance da vacina dos estudos clínicos com a vacina em larga escala, que seria a enviada ao Brasil. A Sputnik V não teria respondido quais foram os efeitos dessa mudança de fabricante, de local de produção e das etapas de fabricação dos insumos e do produto acabado.
Fábricas com “riscos inerentes”
Após adiamentos, uma viagem para visitar fábricas russas da Sputnik V aconteceu em 16 de abril. No mesmo dia, a Anvisa divulgou um laudo com uma lista extensa de informações a respeito da vacina que a agência informou não ter tido acesso para realizar a análise da Sputnik V. A área técnica concluiu que não havia dados suficientes para fazer uma “análise de benefício-risco positiva sobre a vacina”.
A expectativa do governo brasileiro era de que a viagem servisse para a Anvisa certificar as fábricas e também para ter acesso a documentos necessários para a autorização de uso emergencial que ainda não tinham sido entregues.
Porém, Ana Carolina Araújo, gerente-geral de inspeção e fiscalização sanitária da Anvisa, informou que não foi apresentado o relatório técnico de aprovação do imunizante russo, para verificar o controle de qualidade na fabricação.
Foram realizadas inspeções de técnicos da Anvisa em algumas das fábricas russas para a Sputnik V, como as plantas Generium e UfaVITA. Certos pontos ficaram pendentes, como a validação da filtração esterilizante e o relatório final sobre a validação do processo dos insumos. Na UfaVITA, as práticas assépticas e testes de esterilidade precisam “de correção imediata por parte da empresa para mitigação de riscos”. Já a inspeção no Instituto Gamaleya não foi permitida pelo governo russo, o que teria impedido verificar um padrão de controle de qualidade.
Ana afirmou que “o risco inerente a fabricação não é possível de ser superado” tanto para os insumos fabricados quanto para os produtos acabados em ampola de cinco doses ou de dose única.
Comparação com revistas científicas e países
Em fevereiro deste ano, a Sputnik V divulgou eficácia global de 91,6% contra casos sintomáticos da Covid-19 na revista The Lancet. Na última semana, a vacina russa também divulgou eficácia de 97,6% em estudos no mundo real, com 3,8 milhões de russos.
Para Santos, o gerente-geral da Anvisa, a avaliação sanitária é diferente da científica. A última pressupõe acesso aos dados brutos dos estudos. “Como ter confiabilidade nos dados se não conseguimos ter acesso, por exemplo, ao diagnóstico das pessoas que tiveram Covid-19?”, questiona.
A vacina russa foi aprovada em 50 países e está sendo aplicada em países como Argentina, México e a própria Rússia. Estudos independentes da Anvisa dizem que apenas 28% dos países (14) relataram efetiva utilização da vacina.
“Cada país pode e deve fazer o registro segundo suas próprias regras, fazendo ou não exigências específicas. A Anvisa tem por obrigação fazer a análise de todos os pedidos de registro, emergencial ou definitivo, aplicando os mesmos padrões. Se os produtores e produtos forem tratados de forma diferente, existirão vacinas de primeira linha e vacinas de segunda linha. Isso é absolutamente impossível”, explica Ricardo Oliva, ex-diretor da Anvisa, ao InfoMoney. “Frente aos fatos apresentados, a decisão está absolutamente bem embasada. Nenhuma outra vacina foi ou poderá ser aprovada nestas condições.”
Segundo a agência de notícias Reuters, o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF) afirmou que os comentários da Anvisa sobre a Sputnik V “estão incorretos” e que a decisão do órgão regulador brasileiro de adiar uma aprovação da vacina “pode ter motivação política.”
A Sputnik V será usada no Brasil?
A incerteza desafia o cronograma do Ministério da Saúde para o recebimento das 10 milhões de doses da Sputnik V. A pasta descrevia primeiramente a chegada de 400 mil doses até o fim de abril, mais 2 milhões em maio e 7,6 milhões em junho. “Não creio que seja possível o cumprimento desses prazos. Talvez seja possível receber essa quantidade até o final desse período, mas não no cronograma divulgado”, analisa Oliva.
Mesmo com o recebimento, a vacina não será aplicada sem a autorização da Anvisa. Assim, o uso da Sputnik V no país segue uma incógnita.
O governo federal se antecipou aos problemas na aprovação da Sputnik V citados pela Anvisa na segunda-feira (26). No último sábado (24), o Ministério da Saúde tirou as doses russas do seu cronograma de entregas. A pasta ressaltou que o imunizante aguarda aprovação regulatória.
Essas 10 milhões de doses permitiriam a imunização de 5 milhões de brasileiros – assim como outras vacinas contra Covid-19, o regime de aplicação é de duas doses por pessoa. Somando as 66 milhões de doses requeridas pelos governadores, seriam 38 milhões de brasileiros completamente vacinados.
“Qualquer quantidade de uma boa vacina fará diferença para o país. Todas as possibilidades devem ser tratadas como prioridade”, diz Oliva. O ex-diretor da Anvisa, por outro lado, frisou o dever de análise detalhada por parte da agência brasileira. “As vacinas têm que ser analisadas e aprovadas de forma absolutamente isonômica.”
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