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Quando dava aulas no Insper, era corresponsável pelo curso de Problemas em Economia, iniciativa da Luciana Yeung. Oferecida no final do terceiro ano, era uma disciplina dita “capstone”, requerendo dos alunos que juntassem os conhecimentos adquiridos ao longo dos semestres anteriores para identificar e solucionar alguma questão econômica relevante.
Houve trabalhos excelentes, sem esgotar os exemplos, na área de política monetária, crescimento, crime, prostituição e comércio exterior, que me deram enorme satisfação na leitura.
Não posso, porém, dizer o mesmo da Nota de Política Econômica formulada pelo MADE (Centro de Pesquisa em Macroeconomia da Desigualdade) da USP, estimando que a redistribuição de renda poderia elevar o PIB em 2,4% caso as medidas que defende fossem implementadas.
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O argumento é simples e, à primeira vista, bastante persuasivo. Indivíduos (ou famílias) mais pobres tendem a consumir mais de sua renda do que os mais ricos – em economês, sua “propensão a consumir” é mais alta. Ou seja, se transferirmos renda dos mais ricos para os mais pobres, não só reduziríamos a enorme disparidade de renda no Brasil, como cresceríamos mais, embalados pelo consumo.
Tal impacto não se encerraria no efeito direto da transferência em si: como o consumo aumentaria, também o emprego seria maior, logo a renda, portanto novas rodadas de consumo e assim por diante, configurando o chamado “efeito multiplicador”. Como o multiplicador é tanto maior quanto mais alta for a “propensão a consumir”, a redistribuição de renda teria resultados ainda mais vigorosos sobre o crescimento.
Ou, pelo menos, é o que extrairíamos dos modelos macroeconômicos que ensinamos aos estudantes do primeiro ano. Mas dificilmente do que eles aprendem pouco depois.
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Há, para falar a verdade, omissões sérias nas estimativas mesmo dentro do marco de referência deste modelo mais simples.
A começar porque, se houve a iniciativa de estimar a “propensão a consumir” para cada faixa de renda, a questão do quanto o consumo “vazaria” para fora, seja sob a forma de importações mais elevadas, seja por seu impacto sobre o volume exportado não foi adequadamente tratada.
Não há, por exemplo, estimativas por faixa de renda da “propensão a importar”. Há uma estimativa da “propensão a importar” da economia como um todo ponderada pela participação na renda, mas implicitamente supondo que cada real de renda adicional geraria o mesmo acréscimo de importações para diferentes grupos de renda.
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Ignora-se, ademais, o efeito do consumo sobre as exportações: por exemplo, o que ocorre com as exportações de açúcar se há aumento da demanda por álcool combustível?
Sim, sempre à primeira vista, isto pareceria um problema menor. Ricos devem demandar mais produtos importados do que pobres, não? Se alguém está pensando em uísque ou carros importados, parece verdade. Todavia:
(a) a maior parte das importações brasileiras não consiste em bens de consumo, mas matérias primas e componentes para produção local. Então, não podemos dizer a priori que a propensão a importar é maior dentre os mais pobres, pois seu consumo, mesmo de produtos nacionais, tem componentes importados (pense em todos os derivados de trigo, por exemplo);
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(b) extratos mais ricos da população consomem mais serviços, cuja produção é local, do que os mais pobres. Ou seja, o “vazamento” do consumo para o exterior por este lado é menor. De fato, enquanto no índice oficial de inflação, o IPCA, serviços respondem por quase 48% da cesta de consumo daqueles que ganham até 40 salários mínimos, no INPC, índice irmão, calculado para quem ganha até seis salários mínimos, serviços representam pouco menos de 41% do consumo;
(c) o aumento da demanda por alimentos, que tipicamente acompanha a expansão da renda dos mais pobres, subtrai das exportações, fenômeno omitido da análise.
Os problemas, contudo, não se encerram com a omissão das exportações e o tratamento insatisfatório das importações.
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De forma bem mais grave, as estimativas ignoram a reação do conjunto da economia ao aumento do consumo.
Logo depois de ensinarmos no primeiro ano o modelo em que foi baseado o trabalho do MADE, costumamos complicar um pouco a história, introduzindo taxas de juros no problema, fenômeno ignorado pelos pesquisadores. Um pouco mais adiante, trazemos também a resposta dos preços, isto é, o comportamento da inflação, que também tem impactos sobre as taxas de juros.
Tipicamente, um aumento do consumo leva também à elevação da taxa de juros, fenômeno que modera o efeito sobre a demanda. Se os pesquisadores tivessem atentado para isso, sua estimativa do impacto final do consumo sobre a renda seria menor.
Adicionalmente, ao ignorar o comportamento dos preços, supuseram (de novo implicitamente) que a produção pode se expandir sem efeitos sobre a inflação.
Talvez possa ser uma boa representação da realidade em países de inflação muito baixa que lutam para escapar do risco deflacionário, mas certamente não é o caso do Brasil.
Mesmo que não estejamos prevendo descontrole inflacionário iminente, a inflação se encontra próxima a 4,5% em 12 meses, e as medidas menos sensíveis a acidentes de percurso (os chamados “núcleos de inflação”) rodam na casa de 3% no mesmo horizonte, não particularmente elevadas, mas bem distantes do zero.
Em particular, quanto mais próxima estiver a economia de seu potencial – não o caso hoje, mas uma situação que também deve ser considerada – tanto maior será o risco inflacionário e tanto mais alta será a taxa de juros requerida para evitá-lo. Vale dizer, a taxa estrutural (ou neutra) de juros se elevaria em resposta, outra consequência não analisada.
Posto de outra forma, as estimativas teriam que levar em conta possíveis impactos sobre inflação e a reação das taxas de juros, duas forças que moderariam o efeito da redistribuição.
Todavia, analiticamente isso não é viável pela simplicidade extrema do modelo. Há, é bom que se diga, alternativas que não precisam ser extraordinariamente complexas, mas que demandam mais do que algumas regressões e um tanto de álgebra para avaliar a extensão da resposta da economia de maneira mais completa. Ou, pelo menos, seria este meu conselho se alunos do terceiro ano me abordassem para estudar o fenômeno.
Os problemas não se esgotam aí. Segundo uma das autoras do estudo, “é perfeitamente possível desenhar um programa que combine redução da desigualdade com aumento do ritmo de crescimento econômico” [grifo meu]. Na verdade, não.
Para começar, o modelo não tem condições de avaliar crescimento. Tudo se passa dentro de um único período, enquanto o crescimento é um fenômeno que se desenrola ao longo de vários períodos.
O que o modelo consegue mostrar, quase que por desenho, é que a distribuição de renda de ricos para pobres pode gerar algum efeito sobre o consumo da economia, efeito esse que – por força dos argumentos anteriores – está bastante superestimado nos resultados dos autores.
Crescimento econômico, porém, é algo distinto. A expansão da economia ao longo do tempo não depende da demanda, mas do aumento da capacidade produtiva, ou seja, do investimento em capital físico (máquinas, equipamentos, infraestrutura etc.), do investimento em capital humano (educação e qualificação da força de trabalho) e do crescimento da produtividade.
Aliás, como diria Paul Krugman, “produtividade não é tudo, mas no longo prazo é quase tudo”.
Apenas uma dentre as muitas omissões gritantes do tratamento do tema é o silêncio ensurdecedor acerca do efeito da tributação sobre o crescimento.
Tributação progressiva da renda, ou seja, mais alta para a parcela mais rica da população, é analiticamente equivalente a imposto sobre capital, cujo efeito é deprimir o investimento em relação ao cenário livre de tributação, o que leva a menor crescimento.
Diga-se, aliás, que este é um dos motivos mais citados para a troca entre crescimento e equidade, isto é, porque economias mais igualitárias crescem menos do que aquelas com maior desigualdade, tema frequentemente levantado, dentre outros, por Samuel Pessoa. No entanto, os autores simplesmente omitem essa questão central da discussão.
Nada nas estimativas sugere que seja possível elevar o ritmo de crescimento econômico sustentável; no máximo, como notado, consegue levar ao aumento da demanda que pode, ou não, se traduzir em aumento da renda e do emprego dependendo do estado cíclico da economia, isto é, da distância da economia relativamente ao seu potencial.
A verdade é que a discussão sobre políticas públicas requer um tanto de profundidade, certamente bem mais que pode ser encontrada no trabalho do MADE.
Isso obviamente não quer dizer que a distribuição de renda no Brasil não seja desigual, nem que não mereça ser devidamente tratada, inclusive porque resulta de mecanismos de gastos e tributos que a tornam ainda mais desigual. Quer dizer, todavia, que deve ser encarada de maneira séria, o que certamente não foi o caso no estudo do MADE.
Tenho certeza que meus alunos fariam melhor.