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E lá vem mais um artigo sobre ESG. Todo santo dia é uma empresa ou um fundo sendo ovacionado por suas práticas impactantes e sustentáveis como se, do dia para a noite, todos tivessem despertado para o propósito e vissem o mundo cor de rosa, ou melhor, verde, apesar de os princípios que norteiam o ESG não serem nada novos, nem mesmo no Brasil. Mas, de repente, tudo virou ESG.
Em 1992, Charlotte Haley criou a ideia de usar uma fita rosa para conscientizar sobre o câncer de mama e alertar que uma parcela muito pequena do orçamento do Instituto Nacional do Câncer era dedicada à sua prevenção. Mesmo sem rede social, a fita rosa viralizou e rapidamente passou a ser adotada também em campanhas publicitárias de empresas que queriam associar sua marca com a causa.
Não demorou muito até que a BCA (Breast Cancer Action – organização sem fins lucrativos que apoia a causa do câncer de mama) denunciou que muitas empresas utilizavam este expediente para se promoverem, ao mesmo tempo em que fabricavam produtos com ingredientes que comprovadamente aumentavam o risco da doença. A esta estratégia atribuíram o nome de “pinkwashing” – ou maquiagem rosa.
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As empresas envolvidas naturalmente negaram o fato. Ao contrário, como reação às denúncias, passaram a adotar outras medidas para afirmarem seus compromissos com a causa, tais quais a organização de palestras e seminários ou mesmo a realização de vultosas doações para ONGs que endereçavam a causa.
Ficou bastante conhecida a história da Yoplait, patrocinador principal da “caminhada Susan G Komen” pelo câncer de mama. Os recursos arrecadados com a venda do iogurte com tampa rosa eram destinados à causa, mas, ao mesmo tempo, o produto era feito com o hormônio rBGH, que estimula o crescimento dos tecidos do câncer de mama.
Em 2008, a organização “Think Before You Pink” fez uma campanha contra a Yoplait que, após muita pressão, levou sua fabricante, a General Mills, a se comprometer a retirar o rGBH da formulação do produto.
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Antes deste tsunami ESG, era pouco relevante para os investidores brasileiros que uma empresa ou fundo se apresentassem como sustentáveis. Quando uma companhia apresentava seu Relatório de Sustentabilidade, por exemplo, ela dialogava sobretudo com seus fornecedores, colaboradores e clientes, objetivando um reforço de sua cultura corporativa ou construção de marca. Entretanto, ela não seria incluída ou excluída do universo de cobertura dos investidores ou não valeria mais ou menos múltiplo por conta de suas práticas sustentáveis.
Analogamente, os fundos de investimento que se autodeclarassem como praticantes da filosofia ESG podiam até ser repelidos, uma vez que existia (e ainda existe) o falso dilema de que rentabilidade e sustentabilidade não se conversam.
Mas agora os interesses mudaram súbita e intensamente. Qual empresa não quer se vender como sustentável, preocupada com as questões socioambientais e, assim, evitar correr o risco de ser cancelada pelos investidores?
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Se ESG vale múltiplo, então por que não tentar convencer o mercado de que suas práticas são exemplares e, consequentemente, ter suas ações valorizadas? E os fundos de investimento, vendo essa gigante demanda por investimentos ESG, por que não colarem nesta onda?
ESG-washing é a prática de mostrar uma faceta ESG quando ela não existe em essência. Em bom português, seria o famoso “da porta pra fora”, ou “para inglês ver”.
Está evidente que a intencionalidade para a prática do ESG-washing existe, mas o contexto é ainda pior.
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Os pilares fundamentais ESG são as questões relativas ao meio ambiente e aos direitos humanos. Infelizmente, tais assuntos foram ideologizados no Brasil e, durante as últimas décadas, foram pouco debatidos no âmbito do mercado financeiro. Trata-se de questões extremamente complexas, com efeitos sistêmicos e que demandam um tempo de estudo razoável para serem compreendidas em sua essência.
Portanto, os investidores encontram-se ainda pouco preparados para ter um olhar crítico para identificar o ESG-washing, separando quem fala de quem faz ou distinguindo o que é ou o que não é material. Quem não estudou profundamente o câncer de mama, não saberá que o rGBH é cancerígeno e nem que ele era aplicado nas vacas leiteiras para sustentar o incremento de produção de leite, já que nada disso era explícito.
Mas o contexto é ainda pior.
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No caso do produto cancerígeno, é muito clara a questão de binariedade. Quando se trata de ESG, as discussões são complexas, cheias de nuances e pouco binárias. Nenhuma empresa (ou fundo) é integralmente positiva ou negativa. Mesmo entre as mais positivas e destacadas empresas ESG, é absolutamente normal encontrar lacunas. Assim, mesmo entre as menos aderentes ao ESG, haverá uma lista de indicadores positivos e boas práticas que servirão para as empresas (ou gestores) sustentarem suas narrativas.
Temos que lembrar que as informações referentes a ESG são voluntárias, os dados são seletivos, muitas vezes não auditados e não parametrizados. Naturalmente há todo incentivo de mostrar aquilo que é bom e esconder aquilo que é ruim. A pergunta é: os investidores já estão capacitados para identificar aquilo que está oculto?
Curiosamente, no caso dos fundos o risco é ainda maior. Há diversas abordagens para integrar ESG na análise e gestão de portfólio. É fácil compreender, por exemplo, um fundo ESG que investe em empresas que nitidamente possuem boas práticas. Contudo, também é uma vertente ESG investir em empresas que têm práticas controversas, mas engajar-se para que elas evoluam. Portanto, em última instância, qualquer empresa cabe no ESG, da excelente à péssima. Da porta para fora, fica fácil justificar qualquer portfólio. Da porta para dentro, quem saberá o quanto de esforço tem sido feito no engajamento?
Paradoxalmente, o ESG é tão complexo que, na abordagem adequada, ele passa a ser acomodativo. Portanto, curiosamente, no ESG de fachada cabe qualquer coisa, inclusive não fazer absolutamente nada além do discurso refinado.
Teremos que conviver com o ESG-washing por um tempo. Ponto.
Muitos sequer percebem que o ESG-washing ocorre. Há também a corrente dos que entendem a situação como transitória e positiva. Afinal, é melhor falar sobre ESG de alguma forma do que não falar, pois acreditam que na margem há avanços, e, portanto, seja positivo. Mas há também a corrente dos que se preocupam bastante com a situação; e é aí que me encontro e, por isso, cabe uma fundamentação.
Outro dia, ouvi do meu amigo Rodrigo Tavares, fundador e presidente do Granito Group, uma reflexão interessante, quando ele mencionou a similitude entre o tsunami ESG no Brasil e a obra “O Alienista” de Machado de Assis.
O enredo do livro se desenvolve a partir do Dr. Bacamarte, um psiquiatra, que constrói na cidade um manicômio chamado Casa Verde para abrigar todos os loucos da região. Com o tempo, a cidade encontrava-se com 75% de seus habitantes internados na Casa Verde, mas, como o fato não fazia sentido, Dr. Bacamarte decide soltar todos os presos e internar a si próprio.
Não podemos descartar a hipótese de a proliferação da onda ESG encontrar um campo fértil para disseminação do ESG-washing, em que grande parte das práticas das empresas e dos fundos não tenham a robustez que o ESG preconiza. Nesta conjectura, estaria estabelecido no Brasil um conjunto de práticas superficiais que pouco dialogam com a real essência de transformação do ESG, catapultando aqueles que seriamente o cultivam para um nicho, confinados em uma Casa Verde.
Os riscos do ESG-washing extrapolam a questão filosófica. Há impactos diretos em múltiplas dimensões. Se partimos do pressuposto que investidores alocam seu capital em empresas aderentes às boas práticas ESG buscando maiores retornos e/ou menor risco e/ou alinhamento de valores, não é difícil concluir que não identificar quem pratica ESG-washing leva, automaticamente, à redução do retorno esperado, aumento de risco e desalinhamento de propósito.
Se significarmos pandemia como uma enfermidade que ataca simultaneamente um grande número de indivíduos em uma determinada localidade, o ESG-washing praticamente cabe nesta definição. Disparatadamente, o ESG-washing surge a partir do próprio ESG e tem a possibilidade de matá-lo, constituindo-se, então, a sua letalidade.